quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Bichos

Semana passada, não sei por que, me senti meio caramujo. Isso me fez lembrar de um texto escrito há uns anos, justamente sobre bichos. Chama 'bichos' e diz assim:


Sempre me pareceu engraçada a mania de volta e meia perguntar que bicho o outro gostaria de ser. Talvez por eu nunca ter de fato desejado ser bicho. Mas exatamente porque eu não tinha resposta, exatamente por isso, punha-me a pensar. Sentia-me desconfortável por não saber, uma vez que a impressão que as pessoas me passavam era que isso era algo evidente, uma espécie de determinação a priori (“Bem, eu sou uma pessoa, mas, se assim não fosse, certamente seria um colibri.”).

Na busca por satisfazer a curiosidade alheia, eu empenhava-me em refletir. O primeiro bicho que me recordo haver julgado que gostaria de ser foi um cavalo. Naquela época, era criança. Acho que, imersa em minha ingenuidade infantil, me encantava com o porte e com a aparente liberdade dos cavalos. Hoje, entretanto, vejo que a liberdade dos cavalos é igual à que, nesta altura da vida, tenho. E sei que não posso ser completamente livre porque minha liberdade não depende apenas de mim, assim como o cavalo, que não poderá correr selvagemente se o seu dono não o deixar solto. Mas quem sabe é por isso, por não poder contar com a liberdade todo o tempo, que, quando com ela se depara, o cavalo corre tão belamente.

Depois de desistir do cavalo, escolhi o beija-flor. Queria apossar-me da meiguice e da serenidade que me transmitia aquela ave. Queria a placidez que penso não querer mais. Queria pousar em todos os lugares e não ser de lugar algum para não ter passado e, assim, poder ter uma mente sem lembranças. (Um beija-flor pousa em minha janela/ E, imóvel, contempla minha tristeza/ Ah!, quisera eu ser beija-flor/ Para pelo mundo voar/ Para minhas asas estender sobre o mar/ E o horizonte alcançar/ Quisera eu partir e a tudo deixar/ Em busca de um novo habitat/ Mas o beija-flor, o beija-flor, à procura de outras paisagens segue/ Só eu continuo a chorar).

Hoje acho que escolheria ser uma galinha. Principalmente por causa de Clarice (Lispector). Na verdade, imagino que ela escolheria ser uma galinha, mas não sei se ela me pensaria capaz do mesmo. Quero acreditar que sim.

Escolher ser uma galinha é optar pelo bicho talvez mais humano dentre os bichos. É declarar amor à condição humana, um amor clariceano, fundamental para que se possa ser homem verdadeiramente. A galinha, tal qual o homem, não voa, embora alguns tentem, e aí está sua trágica beleza.

Porco não gostaria de ser. Não pelo porco em si, mas porque ouvi falar que os porcos não conseguem olhar para cima. Não são capazes de ver as nuvens e isso me soa bastante triste. É verdade que as galinhas não podem alcançar as nuvens. Apenas olhá-las, todavia, e ficar a tentar adivinhar com que seu formato se parece é, por vezes, suficiente, já que é meditação que traz de volta a serenidade quando dela mais se precisa.

Também não gostaria de ser leão. Não quero ser rei, nem herói. Não tenho necessidade de ver meu nome escrito nos livros de história. É um preço por demais caro - abdicar da vida para ser herói. Não preciso disso. Não quero isso. “Quero é ser apenas uma semente.” Quero é ser pulsante. Só assim poderei tocar o âmago da minha humanidade.

Não mais cavalo. Não mais beija-flor. Em tempo algum, leão. Em tempo algum, porco. Peixe talvez, ou melhor, não, na sua quietude, ele está bastante distante dos homens. Enfim, galinha, com quem os homens aprenderam a ciscar, remexendo o solo do coração, à procura de alimento.

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