quinta-feira, 4 de junho de 2009

Liberdade

Penso que o desfazimento de certos laços tem um lado bom (bom, embora, nem por isso, sem dor): nos proporciona liberdade. Penso e lembro de um texto de Clarice (Lispector), bem ligado a essa reflexão.



"A conquista difícil de um amor
Clarice Lispector

Encontrei um bom amigo numa fila em que estávamos na rua do bairro. Conversávamos animadamente quando meu amigo espantou-se e me disse:
- Olhe, que coisa esquisita.

Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o seu tranquilo cachorro puxado pela coleira.

Só que havia no cachorro algo que não era cachorro. A atitude toda era a de um cachorro e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era.

Tinha focinho comprido de quem pode beber em copo fundo, rabo logo e duro, espetado no ar - poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Meu companheiro de fila levantou a hipótese de se tratar de um quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati.

Ou seria o quati mais resignado e enganado que já vi.

Enquanto isso, o homem calmamente vindo.

Calmamente, não: havia nele uma tensão. Era a calma de quem se controla e aceitou a grande luta. Pois seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um homem pitoresco ou esquisito. Era por coragem que andava em público com o seu estranho animal. Eu estava, sem saber por que, intrigada. E vagamente angustiada.

Meu amigo sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia: havia um mistério na situação.

Só depois é que, aos poucos, eu entenderia que minha atrapalhação não era propriamente minha. Minha confusão vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era e portanto não podia me transmitir uma imagem nítida sua.

Até que o homem passou quase perto de nós. Sem um sorriso, costas duras, altivamente
se expondo - não, nunca foi fácil passar como vítima diante de qualquer fila humana que julga. Fingia prescindir de admiração ou piedade. Mas cada um de nós, por experiência própria, reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho. É tão difícil manter vivo um sonho e fingir que é verdade - à custa de procurar não enxergar a realidade dentro de si.

Aproveitei o fato de o homem estar andando ao meu lado e ousadamente perguntei-lhe:
- Que bicho é este?

Intuitivamente meu tom fora suave para não feri-lo com uma curiosidade desumana e malsã.

Perguntei-lhe que bicho era aquele, mas a minha pergunta incluía talvez o tom de uma indagação mais profunda: "Por que é que você faz isso? que carência é essa que faz você inventar um cachorro? e por que não um cachorro de verdade, já que precisava de dar afeto a um bicho? pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? mas você sabe que a gente não se apodera sem mais nem menos de um amor? não sabe que você esmagaria uma rosa se a apertasse demais com a força do amor?"

Tudo isso que não disse estava incluído na pergunta. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que, se eu aprofundasse demais a coisa, estaria também eu esmigalhando uma rosa. Mas sei que estilhaçar o silêncio com palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio. E que é assim que muitas vezes tenho assassinado aquilo que me forço a compreender. Se bem que, glória a Deus, uso mais o silêncio que as palavras.

O homem, sem parar, respondeu curto, reservado, embora sem aspereza.

E era quati mesmo, por Deus!

Ficamos olhando. Meu amigo e eu nem sorríamos. E ninguém na fila riu-se do homem: esse era o tom, essa era a intuição. Mas olhar pode-se. E sentir.

Era um quati que se pensava cachorro.

Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para árvores e coisas, o que retesava a coleira e retinha um pouco o dono, exatamente na usual sincronização de homem versus cachorro.

Acompanhei com o olhar esse quati que nào sabe quem é.

Imagino: se o homem o leva para brincar na praça e tomar ar, tem uma hora em que o quati se constrange todo:
- Mas, santo Deus, por que os cachorros me olham tanto, como se não fosse um deles? e por que me cheiram desconfiados?

Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancolicamente, olhando as estrelas:
- Que é que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz quanto qualquer cachorro bem tratado! por que então este vazio, esta nostalgia e tanta saudade não sei de quê? que ânsia é esta como se eu só amasse o que não conheço?

E o homem - o único ser que pode livrá-lo da pergunta - esse homem criminoso nunca lhe dirá que ele é um quati - para não perdê-lo para sempre.

Penso: quantas pessoas são o patinho feio que na verdade será um belo cisne depois revelado? O quati que era um cachorro feio a revelar-se um dia um quati de verdade, outra raça, outro destino. Quantas pessoas não estão sendo o que realmente são? Além de grave, a troca de personalidade é angustiante, mal se pode disfarçar. Penso em maridos ou esposas que não dão direito ao outro de ser o que realmente é - e nunca contam o segredo.

E penso também na iminência de ódio que há no quati.

Ele sente amor e gratidão pelo homem que cuida dele. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso. Eu sei, porque sinto ódio quando não me deixam ter a minha verdadeira realidade (qual?). Fico vitalmente confusa e não perdoo.

Não, às vezes eu perdoo - porque quem me toma por outra, precisa muito dessa outra inventada.

(...)

E se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza?

Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse com que esse quati inesperadamente se defrontasse com outro quati.

E nele reconhecer-se. "Eu sou igual a ele." Tremo ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu sou eu... nós somos iguais...

Bem sei, ele teria direito - quando soubesse - de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser: adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo.

Eu sou a favor de bicho: tomo o partido das vítimas do amor ruim.

Mas imploro a esse quati que perdoe com bondade o homem. E que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo para sempre, é claro."


A Clarissa, que, uma vez, me mandou um conto de Caio Fernando sobre dragões, um conto que, pra mim, tem uma ponte com o texto aí de cima.

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