quinta-feira, 30 de abril de 2009

roupas coloridas

vesti-las como quem veste a vida.
para alegrar a alma.

Boasvindas

Sensação de acolhida é quando a gente chega em casa e tem um bolo ainda quente nos esperando. :)

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Da indiferença

Ela chorava compulsivamente no ônibus. Soluçava. Mas o que lhe impressionava era a indiferença alheia. Não, ela não queria ter uma longa conversa com um desconhecido. Nem ouvir conselhos, ou ter um ombro amigo. Mas se espantava com a indiferença. Era como se as pessoas não vissem o que lhe acontecia. Cada qual, inclusive ela, absurdamente enclausurado em seus problemas.

Não, na verdade ela não pensava sobre nada disso naquele momento... Enquanto era acometida pelo choro ela apenas punha pra fora todas as dores, tudo o que guardara durante anos a fio. Era um misto da dor com uma indescritível sensação de liberdade, a liberdade pelas lágrimas. Quem observava a indiferença era eu.

Também aparentemente indiferente.

E dizia:
"Coma chocolates, pequena;
Coma chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates."
(Fernando Pessoa)

Desabafo

Gosto de acender incenso vez por outra. Por isso, costumo ter em casa vários tipos de incenso, cada um pra uma finalidade. Antes de ontem, porém, tive de jogar umas seis "caixinhas" no lixo. Todas passadas da validade (sim, incensos também têm data de validade) e isso não por eu tê-las comprado e demorado a usar. Não. Na verdade, comprei-as fora do prazo de validade (sem saber, claro).

É, eu tenho certeza, porque comprei os tais incensos na "Mundo Verde" do Plaza há um mês e, quando fui ver, antes de ontem, todos tinham mais de um ano de vencidos. Minha vontade foi a de ir lá reclamar, mas, como não conservava mais a nota fiscal, não havia muito o que fazer, talvez apenas mencionar o fato quando eu for à "Mundo Verde" de novo. De todo modo, a partir de agora, serei mais atenta a essa questão da validade dos incensos, mesmo porque acho que é algo completamente negligenciado pelos comerciantes, que, imagino, não cogitam da existência de prazo de validade no que se refere a incensos. O desconhecimento deles, contudo, não afasta a responsabilidade que, por força do Código de Defesa do Consumidor, têm. Isso porque esse diploma legal - desculpem a eventual chatice - consagra, no seu art. 18, a responsabilidade objetiva (sem necessidade de prova de dolo ou culpa) dos fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis que tragam vícios de qualidade (prazo de validade ultrapassado, por exemplo) ou quantidade que, dentre outras coisas, os tornem impróprios ou inadequados ao consumo. O CDC é tão atento à questão que, além de determinar ser a responsabilidade objetiva nesses casos, diz, ainda, que se trata também de responsabilidade solidária, pelo que mesmo o fabricante pode ser responsabilizado caso o comerciante venda o produto daquele (do fabricante) após expirada a validade.

Em todo caso, porém, o melhor, inclusive pra evitar dor de cabeça, é checar o prazo de validade, tanto dos incensos, como de tudo o mais. Quando a gente esquecer disso, todavia, e se deparar com um produto com prazo de validade expirado, é preciso, apesar de ser algo chato e até desgastante de fazer, reclamar. Reclamar pra que o consumidor seja tratado com mais cuidado. Reclamar porque, nessas situações, realmente é preciso. E como é!

terça-feira, 28 de abril de 2009

Vontade

Aprender a fazer bolinhos de chuva. Só por causa do nome. Só por causa do lirismo do nome.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Cabelo II

A postagem de ontem me fez lembrar de um rabisco antigo. Diz assim:


Corto todo o meu cabelo. Eu, sozinha. Corto-o em silêncio. É um ritual. Ninguém me vê. Somos apenas a tesoura e eu e os cabelos que pela cama vão se espalhando. A porta está fechada e eu estou sublime. Agora, agora que já comecei, percebo que isso não é uma passagem. Ao contrário. É uma volta à origem, à minha origem primeira.

Os pedaços que corto são pequenos. Dois, três centímetros no máximo. Mas eu quero que seja assim. Quero que tudo se passe devagar. Estou suspensa no tempo. Ao meu redor, os pedaços de cabelo vão formando um círculo conforme caem. Algo se cria entre eles e eu. Algo que nunca existiu, mas necessário para que, depois, eu possa abandoná-los.

Em verdade, eles nunca foram meus. Como tu. Mas também no teu caso eu preciso fazer real o elo que o meu pensamento acredita existir. Só então poderás partir. Após me teres ensinado o caminho que é capaz de se fazer depois de ti. Perdão.

O último pedaço de cabelo cai. Percebo que eles são bonitos. Ganharam vida ao cair no chão da minha cama. Não sorrio, não choro, estou suspensa do meu eu de há pouco. Volto ao lugar de onde me havia perdido. Apanho um tubo de cola. Serenamente, recolho algumas canetas, ponho-as sobre a cama e, uma a uma, revisto-as com os cabelos que, pacíficos, não reagem ao toque dos meus dedos.

domingo, 26 de abril de 2009

bicicleta e liberdade

para Carol

"Como logrou sua liberdade
a bicicleta abandonada?"
Pablo Neruda

Cabelo

- Teu cabelo tá tão grande. E tão romântico - falou.
- Engraçado você achar que cabelos bastam pra dar a alguém ar de romantismo - respondeu.
- Acho que podem dar sim - disse de novo a primeira. E completou: - Eu mesmo mandei deixar o meu liso desse jeito porque, embora eu preferisse ele do jeito que tava (liso, mas não demais e com certo volume), tava achando aquilo romântico demais e eu andava sem forças pra levar comigo romantismo. Desse modo, pedi pra o meu cabeleireiro deixar assim. Pra eu me sentir uma pessoa pragmática.

sábado, 25 de abril de 2009

Música

Ontem, assistindo a um show de REM exibido na televisão, pensei que eles talvez sejam a banda que mais tem a ver comigo.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Nós

Antes que alguém imagine que pretendo falar sobre o cd de Marcelo Camelo, esclareço logo que não, esse não é o tema deste post, mesmo porque dificilmente eu escreveria qualquer coisa sobre aquele cd. Confesso que não gostei e confesso também que, ao menos pra mim, tá difícil dar credibilidade a Marcelo Camelo depois de Malu Magalhães. x) Agora, o post propriamente dito, apenas uma frasezinha que li e me deu vontade de compartilhar:

"O nós é o envoltório que, em virtude de minha vida, recobre a mim e a quantos existenciei e existencio."

(Evaldo Coutinho, "Ser e estar em nós")

quinta-feira, 23 de abril de 2009

você tem fome de quê?

Estive conversando com um amigo estes dias sobre o porquê de se ter um blog. Do porquê tornar público o que se escreve. Ele me dizia que para ele era algo muito estranho porque sempre mostrava a poucos o que escrevia... Então eu desatei a falar do porque tenho esse blog e o quanto me faz bem escrever aqui. Falei que o "me basta e me sobra" do endereço se refere à literatura ou melhor à arte de uma maneira geral que nos basta e nos sobra. Falei que o blog é o meu espaço de respirar outros ares mais frescos do que o que o mundo jurídico me oferece. Além disso, tornar público o que escrevo além de ser uma forma de estabelecer maiores possibilidades de trocas, a vontade de manter o blog ativo é mais um incentivo a escrever (eu meio que estabeleci um compromisso com o blog e comigo mesma de estar sempre escrevendo e lendo. Pois neste blog quando não venho escrever, venho ler os posts de carol e é sempre uma boa leitura. Vai ver é por isso que eu também só tive blog em grupo, nunca sozinha, talvez eu me sentisse solitária, sem trocas, sem novas perspectivas no blog e simplesmente me entendiasse pelo fato de lá só conter a minha visão das coisas, os meus sentires. Sem dúvida blog em grupo é mais rico.). Tenho este blog como um espaço para respirar livre das pressões e necessidades da vida prática, da vida real.

Necessidade é uma palavra que oprime e que limita.
Eu tenho fome de arte.

"Bebida é água.
comida é pasto.
você tem sede de que?
você tem fome de que?
a gente não quer só comida
a gente quer comida, diversão e arte.
a gente não quer só comida,
a gente quer saída para qualquer parte.
a gente não quer só comida,
a gente quer bebida, diversão, balé.
a gente não quer só comida,
a gente quer a vida como a vida quer.

bebida é água.
comida é pasto.
você tem sede de que?
você tem fome de que?
a gente não quer só comer,
a gente quer comer e quer fazer amor.
a gente não quer só comer,
a gente quer prazer pra aliviar a dor.
a gente não quer só dinheiro,
a gente quer dinheiro e felicidade.
a gente não quer só dinheiro,
a gente quer inteiro e não pela metade.
bebida é água.
comida é pasto.
você tem sede de que?
você tem fome de que?"


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Gran Torino

Andava pensando que, até o fim do ano, não ia assistir, no cinema, a um filme que mexesse verdadedeiramente comigo. Não me perguntem por que pensava que isso ocorreria até o fim do ano. Talvez por se tratar de uma data carregada de simbologia, uma data que quer ser um convite à renovação da esperança. O fato é que, com meus botões, pensava que, até o fim do ano, não veria nada de verdadeiramente comovente em nenhuma sala de projeção cinematográfica. Pensava e ficava feliz por ter visto "Quem disse que é fácil?" lá pra fevereiro, acho, um filme que, se não estou enganada, aqui em Recife, só foi exibido no Rosa e Silva, mas que, ao menos pra mim, merecia um espaço muito maior. Não, não é um filme pretensioso. Longe disso. Arrisco mesmo dizer que um de seus trunfos é o desprendimento e, por consequência, a leveza. Mas não é sobre "Quem disse que é fácil?" que quero falar. Não. Hoje, quero mesmo é falar sobre "Gran Torino". Então, vamos lá.

Sempre cultivei, em certa medida, o hábito de ir só ao cinema. Quando quero ver um filme de (Clint) Eastwood, porém, como, vocês sabem, é o caso de "Gran Torino", uma das primeiras coisas que faço é achar alguém pra me acompanhar. Sim, porque Eastwood, embora me pareça magnífico, alguém que sabe dosar força (me refiro mais à força interior que à física) e sensibilidade ao mesmo tempo, via de regra, mexe comigo o suficiente pra me deixar, de alguma forma, mais vulnerável (digo 'mais vulnerável' porque, no meu entender, todos somos vulneráveis em certa medida. Alguns mais, outros menos, mas todos vulneráveis). Assim, fomos, ontem, Isabelle, uma amiga de longa data (como me disse ela ontem, amiga minha há "metade das nossas vidas"), e eu assistir a "Gran Torino".

Que filme maravilhoso! Como comentei após a sessão, o que de melhor já vi de Eastwood.

Confesso que só fui ver "Gran Torino" por ter sido dirigido por (Clint) Eastwood. Verdade, praticamente por obrigação, porque o trailer, com aquele enfoque todo e basicamente só na violência, não me atraiu. Fui, dessa maneira, imaginando que o acharia bom, mas só isso. Nada além. Qual não foi minha surpresa, portanto, ao ir me envolvendo mais e mais com o filme, até o ponto de, perto do final, estar - me desculpem o drama, mas foi isso mesmo - banhada em lágrimas. Banhada em lágrimas por tudo o que se havia desenrolado diante dos meus olhos, por ver como, por vezes, laços de sangue quase nada significam e como certos laços que construímos com outras pessoas que, por um motivo ou por outro, irrompem em nossas vidas podem ser significativos, podem nos ajudar e ajudar o outro no caminho. Laços e, entre outras coisas, filmes também, claro. :)

o mar

foto de Orneela Fortes

"É bonito se ver na beira da praia
A gandaia das ondas que o barco balança
Batendo na areia molhando os cocares dos coqueiros
Como guerreiros da dança
Oh! quem não viu vá ver
A onda do mar crescer
Oh! quem não viu vá ver
A onda do mar crescer"

ver o mar.
as águas cor-de-verdesazuisvivos.
ver a onda quebrar.

sentir o sal.
e sol.

banhar-me no mar.
encher-me de mar.
largar no mar o que está em mim, mas não me integra.

deixar que a onda leve.

deixar que me leve.
deixar-se leve.
ser-se leve.

banhar a alma.
e deixar o sol secar.
o sol entrar.

amanhecer-se.
amanhecer-me.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Consta ...

Outro dia, lendo uma matéria do site do STJ, me deparei com um "consta nos autos" e me pus a sorrir. Isso porque, então, meu pensamento voou, lembrou de uns versos lindos:


"Dueto
Composição: Chico Buarque

Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz
Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca"

segunda-feira, 20 de abril de 2009

terra

"Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão

Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel

Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão"

Ouvi estes dias um díscipulo de mestre Vitalino que ele tirava do barro o pão.
É a terra dando a vida. De uma nova forma, de uma forma diferente.
Mas ainda assim da terra nasce a vida.

Chuva

Às vezes, acho que o que a chuva quer é nos abraçar. Em seguida, concluo que, se nos mantemos distantes, ela nos abraça por meio da terra, ela nos abraça caindo na terra. Novamente em seguida, lembro que, nem sempre, isso é mais possível, lembro que, já há certo tempo, interpusemos entre a terra e nós o asfalto. Pro bem e pro mal.

domingo, 19 de abril de 2009

palavras

Laura era uma mulher sisuda, de poucas palavras. Não, ela não desperdiçava as palavras. Caçava-as. Tinha o hábito de fazer passeios matinais pelas calçadas das ruas do seu bairro. Era nesses momentos que recolhia as palavras proferidas displicentemente pelos traseuntes, palavras desperdiçadas. Recolhia-as e guardava cuidadosamente no seu repertório. Costumava proferir apenas as palavras necessárias. Precisas. Nem mais, nem menos. Não gostava de exageros. Também não era daquelas senhoras chatas ou por demais rigorosas. Não era boba também. Atenta aprendeu que para falar e escrever é preciso ouvir e ler. Então exercitava esse hábito. E recolhia as palavras caídas pelo chão. Esperava um dia a sua grande explosão. O seu grande momento. Neste dia, ela diria todas as palavras jogadas, desprezadas. Neste dia, a sua pequena vida brilharia. Laura vestiria uma roupa dourada. Ou de qualquer outra cor. Não importava. O importante é que neste dia todas as palavras não ditas ou ditas e não ouvidas, seriam pronunciadas em todas as suas sílabas, todos os seus sons.
Até lá, Laura sucintamente vivia e falava.

Alter mordernism

A Tate Modern de Londres tá com uma exposição chamada 'Altermodern', algo como 'modernidade transformada ou alterada', em português. A proposta é que a modernidade transformada, que seria uma reação à estandardização e ao comercialismo, tenha vindo para suplantar a pós-modernidade. Talvez eu esteja dizendo uma tolice, mas a minha impressão é que se trata de um movimento que, no fim das contas, quer ser uma espécie de síntese do modernismo e do pós-modernismo, um movimento cuja busca, por meio da diversidade tipicamente pós-moderna, é a de alcançar, no sentido mais amplo da palavra, a verdade tão almejada pela modernidade.


No site do Tate, tem um cartoon, didático como só os cartoons sabem ser, que explica o alter mordernism. Pra quem se interessar, fica o endereço: http://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/altermodern/cartoon.shtm.

Tem ainda uns "arquivos" musicais, que valem nem que seja por curiosidade. Deixo também o endereço: http://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/altermodern/mixtape.shtm.

sábado, 18 de abril de 2009

Fotos

Ouvi, ontem, uma moça perguntando a alguém que a atendia se não era possível colocar, na foto que ela olhava, uma amiga que tinha saido em outra fotografia, mas que não estava naquela primeira foto que mencionei, foto essa que a tal moça queria comprar. A atendente foi perguntar a outra pessoa se era possível. Nem lembro mais qual foi a resposta. Lembro apenas que fiquei me questionando qual a graça de comprar um "registro" irreal, um "registro" forjado, um registro que nunca vai ser uma lembrança, porque "registro" de um momento que nunca existiu.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O rio

"Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa."
(Guimarães Rosa - A terceira margem do rio)


"Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai

Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai"

(Caetano Veloso)

Plano

Se um dia tiver filhos, acho que vou deixar que desenhem nas paredes da sala.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Da série "Tão legal que dá vontade de dividir :)"


Vi esse cartão no Postsecret (www.postsecret.com), mas gostei tanto que não resisti a postar aqui.

Costura II

Magnólia sempre fora uma costureira dedicada. Cortava, costurava, descosturava o mal feito. Não admitia um erro. Costureira zelosa. E inventiva. Misturava cores, tecidos, retalhos. Magnólia fazia com o tecido o que desejava fazer com a vida. Como se fosse possível simplesmente cortar ou desfazer o que passou e ficar apenas com o novo colorido e bem feito modelo...

Mas Magnólia insistia e continuava a costurar o tecido da vida.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Costura

Ainda adolescente, Magnólia aprendeu a costurar. Nunca mais parou. Para ela, a costura era uma arte, uma atividade onde o remendo não era mal visto, mas, por vezes, mesmo desejado, um campo onde a mutação não demanda tanto esforço.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Aconchego

Seus braços são do outro.
Outros braços são seus.
Corpos envolvidos.
Abraço.

Intertextualidade

Assisti, por esses dias, a 'Monstros x alienígenas'. A uma certa altura (do meio pro final, acho), comecei a pensar que a historia do filme lembra a de Geni (sim, Geni de 'Geni e o Zepelim', de Chico (Buarque)), Geni que, por conta de um estereótipo, vai continuar a ser apedrejada, mesmo que salve a todos, mesmo que se sacrifique por todos.


"Geni E O Zepelim
Composição: Chico Buarque

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni"


Só pra registrar: os monstros, felizmente, terminam por ter algum reconhecimento.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Colcha

Voltou a forrar a cama com a colcha que, por alguns meses, evitou. Isso porque lhe estava a fazer pensar em questões que, ao menos então, queria deixar de lado. Voltou a forrar a cama com a tal colcha, serena após tudo ter, finalmente, passado, após tudo ter, finalmente, deixado de lhe ser inquietante.

domingo, 12 de abril de 2009

Coração

... porque o post de ontem me fez lembrar dessas linhas:


Foi em uma manhã de domingo
Que ela encontrara o coração
Desbotado e esquecido
Dentro de uma lata de leite

Com cautela, tomou-o nas mãos
E, de imediato, soube
Que era preciso dá-lo
Ao único homem capaz de reanimá-lo

A tarefa era fácil
Porque o tal homem
Ela sabia bem quem era
Sabia e alegrava-se
Por ele ser uma razão (e não outra coisa)
Na vida dela

Mas talvez porque tudo fosse tão simples
Ela meteu os pés pelas mãos
Em lugar de entregar ao homem o coração (qual o encontrara)
Fez, antes, uso de pincel e tinta
Para que o coração parecesse
Mais apresentável

Acontece que o homem
Sem saber da fragilidade do coração
Não o tratou com o devido cuidado
E ele terminou por parar
De bater

Ao se darem conta
Da morte do coração
O homem e a mulher choraram
Em silencio
Mas nada mais havia
A uni-los
De modo que a cada qual só restava
Chorar a dor e, enfim, partir

amarelo-sol

girassóis pelo caminho
a vida pede passagem.

sábado, 11 de abril de 2009

Totem

'Totem' é o nome do poema de Ted Hughes que prometi ontem.
Aqui vai:


"Para espantar (fosse o que fosse) ou atraí-lo
Você pintava corações em tudo.
Era o seu único logotipo.
O seu objeto sagrado.
Às vezes, em torno dele, você pintava uma coroa
De flores infantis, folhas verdes, pétalas amarelas.
Às vezes, ao lado, um azulão de criança.
Mas, quase sempre, corações. Ou um só simples coração vermelho.

Você pintou de preto a moldura do espelho grande -
E, sobre o preto, corações.
E, na sua velha máquina de costura Singer preta, -
Corações.
Vermelho sobre negro, como lampadinhas.

E, no berço que eu fiz para uma boneca, você pintou
Corações.
E, na soleira por onde entrou seu filho,
Um coração -
Vermelho sobre negro, como sangue respingando.

O coração era seu talismã, sua magia.
Como os cristãos têm sua Cruz, tinha você o coração.
Constantino tinha a Cruz - você, o coração.
Seu Gênio da Garrafa. Anjo da Guarda. Escravo Demoníaco.

Quando você, porém, buscava proteção
No seio do seu Anjo da Guarda,
Era o seu Escravo Demoníaco. Igual a um
Peixe fêmea possessivo, na ânsia de proteger você,
Ele a devorou.

Agora as pessoas só vêem
Seu livro da cor do coração - a máscara vazia
Do seu Gênio.
A máscara
De quem abriu os braços como que para abraçá-la
E a devorou.

Os coraçõezinhos que você pintava em tudo
Ficaram, como o rastro do seu pânico.
Respingos de uma ferida.

Os rastros
De quem captou você e a devorou."

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Versos de Ted Hughes

"(...) Mas agora você precisava de uma praia
Como se ansiasse por uma droga. A abstinência de subcorrentes
A cegava, sufocava. Escurecia a escuridão já escura.
Como era imunda a Inglaterra! Só mesmo o mar
Para areá-la. Os sais do oceano purgariam você.
Você queria ser lavada, areada, quarada.
Aquela "jóia na cabeça" - a extensão trovejante, luminosa
De espuma em Nauset. O despropósito de caranguejos
E corrupios. Como ânsia de oxigênio,
Você sonhava antigos verões americanos, a pele negra de sol -
Alguma profecia perdida em algum lugar. A Inglaterra
Era tão pobre! Seria a tinta preta mais barata? Por que eram pretos
Todos os carros ingleses? Para esconder a sujeira?
Ou para serem respeitáveis, como os chapéus-coco
E os guarda-chuvas? Todo veículo era um carro fúnebre.
O trânsito, um remanescente silencioso
Do interminável enterro de Vitória -
O funeral da cor, da luz, da vida!
(...)"


Esses versos são parte de um poema escrito por Ted Hughes, que foi casado com Sylvia Plath. O poema se chama "A praia" e é uma especie de diálogo com Sylvia.

Tou já terminando o livro em que li esse poema ("Cartas de aniversário"), mas gostei tanto dos versos aí de cima que fiquei com vontade de compartilhar. Esses e os de um outro poema, que posto amanhã. :)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Exercício

Há já um tempo, ando querendo uma bicicleta. Pra exercitar a liberdade.

O piano

O cenário era comum. Nada que, à primeira vista, despertasse os sentidos dela. Um bar, alguns amigos, umas bebidas... Porém, inesperadamente, em meio ao barulho, aos risos e danças dos corpos negros que lhe rodeavam. Ela o avistou. Sentou ao lado daquele que é, sem dúvidas, o seu objeto de desejo. Não, ela não tem grandes sonhos de consumo. Não é fascinada por coisas tecnológicas ou luxuosas. Mas um piano sempre desejara. Por isso, sentou-se junto ao piano. Fechado e silencioso. Neste momento, todos os sons e pessoas sumiram-lhe dos sentidos. Ela se concentrava unicamente na poesia daquele piano. Procurava imaginar as melodias já tocadas naquele piano. Procurava ouvi-las. Resgatar a memória do piano e a sua própria memória. Resgatar as poucas notas que já havia ensaiado ao piano. E assim, extasiou-se. Durante alguns minutos ela existiu em razão daquele piano. Percebendo, então, um pequeno livro que um amigo trazia desprentensiosamente. Olhou-o. Percebeu que era de um dos seus favoritos. Apossou-se do livro e pôs-se a ler poesias. Baixinho. Apenas para si e para o piano. E foi assim que passou o resto da noite. Alheia às pessoas, às danças, aos risos, ao barulho dos bêbados. Nem mesmo o incômodo barulho dos bêbados lhe irritavam. Estava extasiada, repleta de música e poesia. Sorria serena. E apesar de manter o semblante calmo vivenciava aquele momento com toda a intensidade. Uma intensidade silenciosa, como o seu piano.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Ritual

Mastigar pétalas de rosas como quem mastiga folhas de coca. Mastigar pétalas de rosas para sobreviver. Pétalas de rosas para sobreviver sem sofrer erosão.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Chuva de verão



Falar em 'chuva de verão' me fez lembrar desse trabalho aí do lado da dupla paulistana "Os gêmeos" e me trouxe saudade de um filme nacional chamado "chuvas de verão", que tem uma das cenas mais lindas que já vi.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Questões

Chuva de verão traz tristeza? Ou é só um espasmo na felicidade?

E a cereja do bolo, como a gente reconhece ela?

domingo, 5 de abril de 2009

Domingo

Confesso que não sou muito chegada a domingos. Domingo passado, contudo, me debrucei em uma das janelas do "Esperança", o hospital, que, pra mim, tem uma vista linda, apesar da sujeira do rio embaixo, enfim, me debrucei em uma das janelas do "Esperança" e fiquei sorrindo sozinha ao perceber que crianças brincavam na "Academia da cidade" do Joana Bezerra (toda vez que passava por ali, ficava me perguntando se aquela "academia" tava sendo usada pela comunidade. Ao constatar que sim, fiquei imensamente feliz, por ver que os moradores ali da área, agora, têm ao menos uma opção de lazer). Também me fez sorrir o fato de que, em dois terrenos baldios, havia times que jogavam futebol, o fato de que, ao menos naquele momento, aquelas pessoas, provavelmente, eram felizes.

Sigo com aquelas imagens na memoria. Elas me alimentam.

sábado, 4 de abril de 2009

Estar

Talvez só dormindo a gente esteja completamente no 'agora', a gente vivencie completamente o 'agora'.

Deve ser por isso que dormir é tão bom.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009

quarta-feira, 1 de abril de 2009

flores de abril




























"E de que modo sutil
Me derramou na camisa
Todas as flores de abril!"
(Chico Buarque)

Estrada



... porque, na estrada, predomina uma sensação de total liberdade, de inexistencia de amarras. Na impossibilidade de pegar a estrada todo dia, porém, uma foto me parece não uma boa válvula de escape, mas um útil lembrete, o lembrete de que a estrada sempre tá lá, disponível. O lembrete de que há outros caminhos possíveis.

A imagem aí do lado faz parte da serie "Campo Cego", de Cao Guimarães e Carolina Cordeiro.