domingo, 31 de maio de 2009

Futuro

- É a coisa mais horrível do mundo dizer que o Brasil é o país do futuro - falou. E completou: - é, porque o futuro nunca chega.

Não tive vontade de responder nada. Só lembrei, em silêncio, de um personagem de um livro que li, personagem esse que dizia que o futuro serve pra gente construir o presente. Pra construir o presente, disse a mim mesma.

sábado, 30 de maio de 2009

Janela

Falar em portas me fez lembrar de janelas...



Caminho

Ela finalmente encontrara a janela
A janela que estava longe de ser um ombro
Onde repousar a cabeça para dormir
Para esquecer
O azedo

Sim. Daquela vez, a janela era libertação
Deixava de ser símbolo de conformismo
De tábua
(Embora não de salvação)

É verdade
Nunca uma janela fora tábua de salvação para ela
Haviam sido, antes, encosto, dando um pouco mais de fôlego
Ou melhor, apenas um pouco mais de ar
Para prolongar os suspiros

Só que, daquela vez, bem, daquela vez a janela não era exatamente uma janela
Isso é, a janela, embora janela, foi compreendida por ela como uma porta
Uma porta que se abriu devagarzinho, deixando entrever uma fresta
A fresta por onde ela iria passar

sexta-feira, 29 de maio de 2009

das árvores


gosto dos pés de jambo e dos ypês - principalmente os amarelos -
porque são árvores que se entregam à terra com beleza
colorindo o chão e a vista

Portas


Às vezes, fechar um livro é como fechar uma porta. Uma porta que, por isso ou por aquilo, não mais convém ser aberta.

Pelo menos, sei que, ao abrir outro, encontrarei uma outra porta. Talvez a porta então necessária à vida. Talvez uma porta bonita como essa aí do lado, criada por Michelangelo Pistoletto.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Corpos





Essas imagens são de um trabalho da artista cubana Ana Mandieta, Body Tracks (Rastros Contemporales). Nele, ela se propôs a mexer com a ideia de um auto-retrato em ruinas. Ela queria apresentar o corpo dela (sim, é ele que aparece nessa série de fotos) como um corpo não individualizado, como um corpo igual a todos os outros corpos. Isso me lembrou muito Tereza, um personagem de (Milan) Kundera, me lembrou muito algo que ele escreve sobre ela: "Agora podemos compreender melhor o sentido do vício secreto de Tereza e de suas longas e repetidas permanências diante do espelho. Era um combate com sua mãe. Era o desejo de não ser um corpo como outros corpos, mas de ver sobre a superfície de seu rosto a tripulação da alma surgir do ventre do navio." E mais adiante: "(...) Viera viver com ele para escapar do universo materno, em que todos os corpos eram idênticos. Viera viver com ele para que seu corpo se tornasse único e insubstituível. E eis que ele traçava um sinal de igualdade entre ela e as outras, beijando todas da mesma maneira, distribuindo as mesmas carícias, não fazendo nenhuma, nenhuma, mas nenhuma diferença entre o corpo de Tereza e os outros corpos. Ele a devolvia ao universo do qual pensava ter escapado. (...)" (A insustentável leveza do ser)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Sonhos

Os sonhos nascem envoltos em veludo. Na verdade, são o próprio veludo.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Verso de Byron

Simplesmente porque esse verso me soa lindo:

"She walks in beauty like the night".

domingo, 24 de maio de 2009

O pai, o filho, o forno

"Nacinho era filho de padeiro. Mestre padeiro, como gostava de dizer seu pai. Cedo na vida, foi ajudá-lo na padaria, primeiro carregando farinha, melando-se de branco, o fino pó mesclado ao suor do corpo pequeno. Gostava de ver o pai batendo na massa, sabendo o ponto em que a pasta estava pronta para ser moldada, os pequenos pedaços enfileirados na tábua cumprida, enfiados no forno em que o fogo esperava, quieto, sem pressa para transformá-los em pão. Aprendia pelos olhos o movimento preciso das duas mãos sacudindo a longa pá, os pedaços de massa obedecendo à ordem das mãos paternas, caindo uniformes no chão do forno. Algum dia queria ele mesmo ser o dono daquele movimento. Compor a mistura, bater a massa, dar forma aos pães, nada parecia mais bonito do que o momento de introduzir a pá no forno e o gesto vigoroso e preciso de entregar o pão ao trabalho do fogo.

Um dia, seu pai morreu, como morrem os pais. Mas se os pais podem morrer, morrer não pode o que fazem os pais. E vai Nacinho, nascido Inácio, escrito Ignácio, fazer o que seu pai não mais podia. Num gesto automático, botou no bolso as chaves que estavam em cima da penteadeira. Deixou o corpo do pai ao pranto das mulheres, deixou a casa ao cheiro lúgubre das velas, deixou a rua à procissão das almas e foi cumprir o ofício de ser como seu pai.

A madrugada o conduzia a passos firmes entre poças de lama até a rua calçada de onde já se via, por cima dos toldos de lona, o acrílico das letras vermelhas sobre o fundo branco: Padaria Triunfo. Sentados no meio-fio, três homens esperavam. Quando ele passou, todos eles se levantaram. Sem dizer nada, apenas esperaram pelo gesto que tirou do bolso o molho de chaves. Aberta a porta, acesa a luz, estava lá o forno e sua boca a quem, agora, ele daria vida. A lenha estava lá, preparada desde a véspera. Foi fácil ensopar de querosene os gravetos embaixo dos toros grossos e jogar o fósforo aceso numa manobra rápida que não evitou, porém, um leve chamuscar dos pêlos da mão. Pronto, estava lá o fogo esquentando a chapa de ferro que logo incandesceria. E logo o trabalho dos homens fez girar a misturadora com a massa de farinha, fermento, água e sal. E logo os pedaços de massa estavam enfileirados sobre a longa pá, esperando pelo corte fino por onde se abririam depois, grávidos de calor.

Tudo pronto. Faltava agora apenas que as duas mãos de Inácio apanhassem a longa tábua e a enfiassem pela boca do forno - forno, tirando bolo - bolo, o que eu mandar - dá: seu rei mandou dizer que esta longa tábua grudasse em suas mãos Inácio, e que você agora é ela. E que a boca do forno está aberta esperando por você. Quando você enfiar a tábua com os pães, você vai entrar junto com ela. Você agora, Inácio, além de tábua, é mais um pão. Só mais um que o forno vai cozer, vai assar, vai dourar, estufar e depois mandar pra uma mesa qualquer de qualquer casa onde um homem qualquer vai partir em dois e mergulhar no copo de café e depois chupar a ponta mais molhada e enfiar todo na boca que vai mastigar você com poucos dentes. Mas antes esta outra boca, esta boca de forno, vai engolir você.

Lá vai Inácio enfiando a longa tábua com os pedaços brancos em fileira. Adeus, Inácio, que o forno vai comer, Lá vai e não vai Inácio que o forno já lambe a cara, que dentro do forno em brasa vê a cara de seu pai. As mãos largam a tábua. As mãos desesperam e agarram a borda do forno. Chiam, ardem as mãos. Entre dor e susto, Inácio vê pela última vez a boca do forno pai."
(Ronaldo Monte, em Memória do Fogo)

O outro

"(...) A figurar Matilde trancada num sanatório, era mil vezes preferível perambular pela cidade, adivinhando a silhueta dela em cada janela de arranha-céu. Algum dia eu haveria de topar com ela, mesmo que se passassem anos, mesmo aos beijos com outro. E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. A calçada onde em tempos ela saltitava como se jogasse amarelinha, porque não podia pisar senão nas pedras brancas. (...)"
(Chico (Buarque), Leite Derramado)



A outra

A outra.
Assim ela se observa,
Quando contigo.
A outra muito quer
Querendo outra ser.
A outra é para ti
Imperceptível.
Pena.
Procurava ela tão só um abrigo
Onde adormecer.

A outra.
Para ela só indiferença.
Tamanha.
E sequer percebes
Tanto machuca.

A outra pensou em uma árvore
Onde se enforcar.
Desistiu.
Nem assim te lembrarias
Ela a te mirar.

sábado, 23 de maio de 2009

Da série "Tão legal que dá vontade de dividir"



Acho que essa imagem aí do lado é da capa do livro de mesmo nome, livro esse cuja autora chama Sara Fanelli. Gostei tanto (do título do livro e da imagem em si) que, mal vi, tratei logo de postar aqui.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

plano

plantar flores nas janelas e portas
para que ao chegar e sair da dureza do mundo
lembrar de deter o olhar nas coisas belas
e para que as flores não permitam
que a dureza adentre a casa

Pra alegrar um dia de chuva



Cores. Pra, como disse, alegrar um dia chuvoso.

Ah!, o quadro é de um artista chamado Ben Nicholson.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Cinema e música

Fui assistir "Simplesmente feliz" e saí do cinema com dois versinhos de Vinícius (de Moraes) e Baden Powell na cabeça: "É melhor ser alegre que ser triste/Alegria é a melhor coisa que existe".

Cada vez mais, me convenço que é assim mesmo.

Um brinde à alegria então.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mario Benedetti

Tava eu, ontem, lendo um informativo jurídico da segunda-feira quando, de repente, me deparei com uma nota com o seguinte teor: "O escritor uruguaio Mario Benedetti morreu hoje em Montevidéu aos 88 anos." Li e parei. Como assim Mario Benedetti morto? Como? Tá, todo mundo morre e, afinal de contas, ele já tinha passado do tempo em que a morte, quando vem, é uma surpresa, mas, ainda assim, me surpreendi. Talvez porque, pra mim, ele era daquelas pessoas pra quem a morte não chega.

Depois de absorver a notícia, fui direto ao blog de Samarone (www.estuario.com.br), um jornalista aqui da cidade. É que descobri Mario Benedetti no blog dele. Como ele gosta muito de Benedetti, imaginei que, certamente, ele teria escrito algo a respeito. E lá estava: algumas linhas contando que Benedetti tinha escrito, em um de seus poemas, que gostaria de ter uma caneta ao seu lado, após a morte. Que coisa mais linda!, penso e penso, em seguida, que escrever é o que sempre nos salva. Também um parágrafo dizendo que a morte de Mario Benedetti havia começado depois da morte da mulher dele. Leio e me lembro de (Dorival) Caymmi, com quem acredito ter se passado a mesma coisa.

Ao final, leio um poema de Benedetti e me dou conta de que ele continua por aqui. À noite, saio pra assistir aula e, junto com o caderno, levo comigo um livro dele. Levo-o para sentir Mario Benedetti comigo, de alguma forma. Antes de dormir, ponho, cuidadosamente, o livro de volta ao lugar de onde o havia tirado. Ponho-o e lembro que Guimarães Rosa escreveu que "As pessoas não morrem. Elas ficam encantadas". Então penso: é isso! Ele continua por aqui, dizendo-nos que "não podemos (...) deixar que a canção se converta em cinzas."


"Por qué cantamos
Mario Benedetti

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

usted preguntará por qué cantamos

si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

usted preguntará por qué cantamos

si estamos lejos como un horizonte
si allá quedaron árboles y cielo
si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

usted preguntará por que cantamos

cantamos por qué el río está sonando
y cuando suena el río suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza."

terça-feira, 19 de maio de 2009

Do coração de quem viaja

"chegar e partir nem sempre é uma festa. Depende muito do coração de quem viaja. De onde está o coração de quem viaja. Reparando bem, ninguém leva o coração quando viaja. Ou se deixa o coração no lugar de onde se parte, ou se vai buscar o coração onde se quer chegar. A viagem é sempre feita com um buraco no peito."
(Ronaldo Monte)

Chão

Chão de giz
Chão de estrelas
Chão de terra batida
Chão de terra molhada
Chão ... sumido (de repente)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Olhos

Quando a tristeza vem, o brilho dos olhos se vai. São acontecimentos concomitantes e a chegada, de um, ou de outro, é inconfundível. Desse modo, talvez o remédio pra tristeza seja aprender a cuidar. Cuidar, dentre outras coisas, do brilho dos olhos. Aconchegá-lo. Para que ele permaneça. Para que ele não se vá.

domingo, 17 de maio de 2009

Sobre gatos e galos

Pulo do gato
Não do galo
Pulo do gato
Porque o galo
Tão ocupado
Com o modo
Como é olhado
Porque o galo
Tão amedrontado
Com perder o reinado
Está fadado
A ser superado
Pelo gato
Nunca ligado
No pão negado
Pelo gato
Sempre empenhado
Em alcançar o outro lado





A imagem aí do lado é de um trabalho do artista plástico Luiz Hermano e chama 'Gato'.

sábado, 16 de maio de 2009

Devaneio

Talvez o pulo do gato do surrealismo seja o abrir a porta a todas as possibilidades. Sob essa perspectiva, o surrealismo é como os mundos existentes nos sonhos infantis. Mundos sempre encantados.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

casulo

as vezes ao redor tudo se faz tão rude
que a solução é pôr as lágrimas num casulo
e deixar o tempo agir
para que as lágrimas se transformem em risos
como as largatas em borboletas.

Improvável

Queria que, qualquer dia desses, chovessem girassóis em lugar de pingos de chuva. Girassóis a representar a quebra de paradigmas. Girassóis a estimular a quebra de paradigmas.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

grávida

carregava no ventre a vontade de viver o mundo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

ponto de respiro

para que a rotina não nos engula
caminhar bem devagar
ter os pés no aconchego
da água morna ou da terra macia
ter sob as vistas a vida
ou um quadro colorido
ouvir uma música
ou os barulhos estranhos dos bichos



terça-feira, 12 de maio de 2009

Gentileza

Algo que traz leveza à vida, ainda que nos dias mais pesados, é a gentileza. Pelo menos pra mim traz. E como traz!

Sei que o comum não é considerar assim, mas penso que se trata de um ato de cuidado praticado por um desconhecido ou por um semi-conhecido (aquelas pessoas que a gente só cumprimenta, por exemplo) e penso dessa maneira porque, no meu pensamento, atos de cuidado praticados por pessoas com quem temos alguma proximidade são demonstrações de carinho, de amor, de afeto, e não gentileza. Nesse contexto, gentilezas seriam os atos mais gratuitos. Deve ser por isso que me comovem tanto.

Semana passada, por exemplo, peguei um ônibus quase às 11h da noite e, enquanto me equilibrava em pé, segurando alguns livros e procurando minha bolsinha de moedas pra poder, finalmente, pagar a passagem, uma mulher que tava sentada na parte da frente do ônibus pegou no meu braço e perguntou se eu não queria que ela segurasse os livros até eu achar o dinheiro. Dei os livros e, praticamente em seguida, dois deles caíram no chão, mas foi tanta a delicadeza da mulher quando me abordou e tão preocupada ela ficou com o fato de os livros terem caido que eu só conseguia sorrir e dizer: "Não se preocupe. A senhora tá me fazendo um favor."

Depois de pagar, pegar os livros de volta e rodar a catraca, sentei em uma cadeira vaga e fiquei olhando o que dava pra ver da noite através da janela. Quando desci do ônibus, me sentia mais leve, sorria e pensava naquela mulher, provavelmente voltando pra casa depois de um dia cansativo de trabalho e de outras obrigações, mas, mesmo assim, tão doce, tão gentil. Uma desconhecida cuja lembrança me inspira fé na vida. E me faz sorrir.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Da série "Tão legal que dá vontade de dividir"



Não resisti a postar essa pintura aqui. É que a acho nada pretensiosa e simplesmente uma fofura! x) Chama "Dama e vagabundos" e é de Cristina Canale.

domingo, 10 de maio de 2009

Mãe

"Fomos para Água Branca e hospedamo-nos na casa de um amigo. Mané Taratá foi avisado de nosso paradeiro e logo Lampião nos alcançaria. Dois dias depois do seu nascimento, o menino recebia o nome de João do Mato. Algumas pessoas assistiram ao batizado. Maria Bonita e Lampião, seus padrinhos, jogavam-lhe água na cabeça e diziam a um só tempo:

- Te batizo em nome do Padre, do Fio e do Esprito Santo. Amém. Que Deus te dê sorte, João do Mato.

João do Mato nascera em uma gruta, numa tardezinha de meio de ano de mil novecentos e trinta e sete. Ele era o filho de minha meninice... o filho de minhas tropelias pela caatinga.

O destino, porém, preparava a hora de separar-me de meu filho - era a situação, em verdade, que nos impunha este procedimento. Quem, levando uma vida perigosa e incerta como aquela, poderia ter filhos em sua companhia? Como cuidar de bebês se, muitas vezes, não tínhamos água, comida, roupa, nem descanso? Impossível. Não existia outra solução. A criança poderia ficar doente, exigir cuidados e, quando uma volante estava no rastro do grupo, as paradas eram impossíveis. Mané Taratá e sua mulher foram encarregados de levar João do Mato até a casa de Galdino Leite, um amigo. A grande alegria por ter dado à luz um filho me foi imediatamente substituída pela imensa tristeza por ter de separar-me da criança. Depois de tanto sacrifício, eu não teria o direito de criar meu próprio filho. Era triste ter de entregar a alguém aquele ser indefeso, inocente, sem saber o que se passava ao seu redor.

Fiquei só, profundamente só a partir daquele dia. Nada preenchia o vazio que ocupou meu coração. Era como se tivessem levado um pedaço de mim.

Estava incompleta. Faltava meu João do Mato, com quem eu tanto sonhara e agora não podia sequer segurá-lo em meus braços de mãe; a vida não me dava o direito de ver meu filho crescer alimentado por mim e receber a ternura do meu sorriso, mesmo dentro das caatingas, na rudeza da vida do cangaço. Mesmo assim quisera eu ter o direito de criá-lo, de vê-lo chamar-me de mãe pela primeira vez, como faziam as outras crianças.

O tempo, porém, cura tudo, mesmo as feridas que mais doem. Aos poucos, fui encontrando maneiras de suportar aquela saudade, tiradas do meu interior. Afinal, meu filho estava bem guardado.

No dia seguinte, já estava novamente em outra andança pelo mato.

Nos coitos, ocorriam ocasiões, poucas é verdade, de os casais dialogarem entre si - marido e mulher - sobre o destino a seguir, coisas a fazer, decisões a tomar e planos para o futuro (mesmo que o futuro fosse um paradoxo, algo incompreensível, mas real, numa existência essencialmente marcada pela luta pela sobrevivência e pelo presente, pelo agora, na qual o passado era folha caída e transformada rapidamente em húmus pela terra da memória).

A maior tristeza para uma mulher cangaceira era dar à luz um filho e ser obrigada a dá-lo a gente estranha para criá-lo, com pouca ou nenhuma possibilidade de revê-lo algum dia. O agravante era não poder dar o filho para alguma família conhecida, por causa das perseguições que sofriam por parte das volantes.

Os filhos eram dados às escondidas, para que ninguém soubesse serem filhos de cangaceiros."

(Ilda Ribeiro de Souza (Sila), Angicos, eu sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço)

pacto

ainda que com os pés bem ficandos ao chão
ter os olhos no céu pousados

sábado, 9 de maio de 2009

Noite

Caminhar na rua à noite traz, pra mim, uma tranquilidade que a caminhada durante o dia não proporciona. Tranquilidade e paz. Deve ser porque a noite é uma espécie de fim. No caso, fim para um novo começo.

****

"O perigo espreitava invisível em cada esquina, na hora cheia do meio-dia, quando as almas somem junto com as sombras, deixando o corpo desocupado, em risco de ser tomado por não sei quem. O perigo engordava à meia-noite, a hora grande, divisória nítida dos dias, escura marca do passar do tempo, quando tudo é sombra e as almas todas se misturam."
(Ronaldo Monte, Memória do Fogo)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sobre amigos

Uma amiga me enviou a matéria abaixo. Li e senti vontade de compartilhar.


"Para que servem os amigos? Para uma vida mais saudável
Por TARA PARKER-POPE

Na busca por uma saúde melhor, muitas pessoas recorrem a médicos, livros de autoajuda ou suplementos herbáceos. Mas esquecem uma arma poderosa para combater a doença e a depressão, acelerar a recuperação, reduzir o envelhecimento e prolongar a vida: seus amigos.

Pesquisadores começam a dar atenção à importância da amizade e das redes sociais na saúde em geral. Um estudo australiano de dez anos descobriu que pessoas idosas com um grande círculo de amigos tinham 22% menos probabilidade de morrer durante o período do estudo do que as que tinham menos amigos. E no ano passado pesquisadores da Universidade Harvard relataram que fortes laços sociais poderiam reforçar a saúde do cérebro conforme envelhecemos.

"Em geral, o papel da amizade em nossas vidas não é muito bem avaliado", disse Rebecca G. Adams, professora de sociologia na Universidade da Carolina do Norte, em Greensboro. "Existem muitos estudos sobre famílias e casamento, mas muito poucos sobre a amizade. Isso me surpreende. A amizade tem um impacto maior em nosso bem-estar psicológico do que os relacionamentos familiares."

Em um novo livro, "The Girls From Ames: A Story of Women and a 40-Year Friendship" [As garotas de Ames: uma história de mulheres e uma amizade de 40 anos], Jeffrey Zaslow conta a história de 11 amigas de infância que se espalharam de Iowa para oito estados americanos diferentes. Apesar da distância, sua amizade sobreviveu à faculdade e ao casamento, ao divórcio e outras crises, incluindo a morte de uma das amigas com 20 e poucos anos.

Duas delas souberam recentemente que têm câncer de mama. Kelly Zwagerman, professora colegial que vive em Minnesota, disse que quando recebeu o diagnóstico, em setembro de 2007, seu médico lhe orientou que se cercasse de pessoas queridas. Ela então procurou suas amigas de infância, apesar de morarem longe.

"As primeiras pessoas para quem eu contei foram as mulheres de Ames, por e-mail", ela disse. "Imediatamente recebi mensagens e telefonemas de apoio." Em 2006, um estudo com quase 3.000 enfermeiras com câncer de mama descobriu que as mulheres sem amigas íntimas tinham quatro vezes mais probabilidade de morrer dessa doença do que as mulheres com dez amigas ou mais. E, notavelmente, a proximidade e a quantidade de contato com uma amiga não eram associadas à sobrevivência. Apenas ter amigas era uma proteção.

Bella DePaulo, professora-visitante de psicologia na Universidade da Califórnia em Santa Barbara, cujo trabalho enfoca pessoas solteiras e amizade, nota que em muitos estudos a amizade tem um efeito ainda maior sobre a saúde do que um cônjuge ou parente. No estudo de enfermeiras com câncer de mama, ter um cônjuge não era associado a sobrevivência.

Exatamente por que a amizade tem um efeito tão grande não está totalmente claro. Amigos podem prestar serviços e buscar remédios para uma pessoa doente, mas os benefícios vão muito além da ajuda física.

Talvez as pessoas com fortes laços sociais também tenham mais acesso aos serviços e tratamentos de saúde. Além disso, a amizade claramente tem um profundo efeito psicológico. "As pessoas com redes de amizade mais fortes sentem como se houvesse algo a que elas podem recorrer", disse Karen A. Roberto, diretora do centro de gerontologia da Universidade Virginia Tech. 'A amizade é um recurso subvalorizado. A mensagem constante desses estudos é que os amigos tornam sua vida melhor.'"


Claro que ninguém vai fazer amigos porque isso faz bem à saude, né?, afinal, como todos bem sabemos, amizades simplesmente acontecem. Ou não. Tá, se constroem, é verdade, mas, pra isso, não dependem apenas de boa vontade, pelo menos acho que não. Precisam, como, talvez, tudo o mais, de empatia, empatia que, estando dentro do campo da subjetividade, foge à racionalidade e ao esforço consciente. Seja como for, porém, é bom saber que os amigos contribuem, além de tudo, para que tenhamos uma vida mais saudável. E aproveito pra agradecer aos meus (aos que leem este blog e aos que não leem, mas que nem por isso deixam de ser meus amigos), porque, se a vida tem um "espaço" que me faz sentir sortuda, é aquele ocupado pelos amigos que tenho e pelos que, espero, ainda vou ter, pelos que ainda virão para agregar um pouco mais. :)

dasabafo

Ontem à noite quando eu já estava me preparando para ir dormir passei a vista no canal da Globo e vi que estava passando Jô Soares que formava uma mesa de debate com mais quatro jornalista especializadas em política. Decidi assistir um pouco. Obviamente, eu não esperava nenhuma posição diferente da conservadora, mas é sempre bom ao menos parar para ouvir os argumentos da direita.

O assunto em pauta é a proposta de reforma política que deve ser votada por esses dias no Congresso. Mais especificamente a questão do voto em lista e do financiamento público de campanha. O que me assustou não foi nem tanto a posição defendida, mas a total falta de contraditório. Realmente não entendi o sentido de se ter 5 pessoas discutindo um tema se todas elas têm a mesma opinião em linhas gerais, tendo apenas pequenas discordâncias em detalhes, mas na essência as posições sobre todos os assuntos que acabaram sendo discutidos eram sempre iguais.

Sobre o voto em lista ele e elas eram radicalmente contrários, sob o argumento de que só favorece os caciques eleitorais e impede a renovação política. Concordo que estes são pontos a serem considerados e bem ponderados. Confesso que não tenho posição definida acerca do voto em lista, pois se por um lado vislumbro que de fato a possibilidade das listas serem completamente controladas pelos caciques de cada partido, vindo a favorecer sempre quem já está no poder e seus apadrinhados políticos, impedindo a renovação (claro que a possibilidade dessas consequências acontecerem ou não depende da legislação, pois é possível criar mecanismos de controle como, por exemplo, a exigência de convenções partidárias ou votação interna dos filiados para formar definir a ordem da lista); por outro lado, entendo que a votação em lista fortalece os partidos políticos, despersonifica o processo eleitoral - o que tende a torná-lo menos clientelista e paternalista -, a campanha política terá que se dar em cima de programas e não de pessoas, facilita a cobrança dos eleitores que recairá sobre o partido - e não sobre A ou B e nem haverá a possibilidade do partido se desresponsabilizar politicamente pelas atitudes de seus parlamentares, pois ao definir a ordem da lista interferiu diretamente na eleição deles. E justamente por não ter uma opinião definida é que eu acho importante o debate e debate foi tudo o que não houve no programa.

Sobre o financiamento público eu de fato discordo radicalmente dos "debatedores", pois acredito que o financiamento público facilita o controle, a transparência, impede o abuso de poder econômico, dificulta a corrupção e a existência de caixa 2 nas campanhas.

Mas enfim, para além das posições - nunca conflitantes - defendidas na mesa de "debate", o que me assustou, ou melhor, me indignou foram: 1. a ausência total de contraditório; 2. a forma como os argumentos contrários que existe sobre o tema nem mesmo eram rebatido, mas simplesmente desqualificados (em geral, a partir da desqualificação genérica sobre os políticos - veja bem, não que eu não que no congresso tem muito político corrupto, mas é que afirmações como "todo político é corrupto" ou outras do gênero apenas cumprem o papel de afastar a população do debate e da vida política do país); 3. o modelo norte-americano de democracia é o tempo todo mencionado como a referência, o melhor que existe, incontestável e que deve ser copiado - aliás, como tudo o mais que vem dos EUA -(e cá pra nós a democracia americana tem muitos problemas, a começar pela super concentração partidária o que gera um bipartidarismo, não na lei, mas na prática); 4. o pensamento de que a elite e a classe média são as únicas com discernimento suficiente para participar efetivamente da vida política e interferir nas decisões do país;

Este último ponto foi o que mais me indignou. Em certo momento, quando se debatia sobre o voto obrigatório foi mencionado o exemplo da Argentina em que o voto é facultativo. Aí uma das jornalistas presentes, chamada Lúcia Hipólito, disse que tinha sido um desastre porque aí só quem continuava votando era o voto de cabresto e " que as pessoas de bem, ou seja, a classe média e a elite" tinham deixado de votar e tinham se afastado da política. Essa frase e todo o pensamento que está por trás dela simplesmente me deixou FURIOSA.

Por fim, vale a pena mencionar ainda um dos assuntos comentados. A demissão de mais 100 pessoas que ocupavam cargos comissionados da INFRAERO. Tal fato foi louvado no programa. E eu louvo também. Porém, após a menção desse fato começou a se falar de que isso era essencial para a abertura de capital da INFRAERO e para a privatização dos aeroportos. E disso - a privatização dos aeroportos - que eu discordo completamente. Seria entregar mais um setor estratégico nas mãos da iniciativa privada e o que é estratégico para o desenvolvimento e segurança do país não pode estar nas mãos da iniciativa privada que vende qualquer coisa a depender do preço, que não cumpre os compromissos firmados com o poder público e que - é preciso que se desmitifique isso também - não trazem uma melhoria na prestação do serviço. Ah! Ainda falando sobre os aeroportos, antes que alguém diga: "você viu que não funciona aeroporto nas mãos do Estado, você não lembra do apagou aéreo?". Eu respondo: lembro sim do apagão aéreo (que em boa parte foi fabricado pelas companhias aéreas que cancelavam e atrasavam voos sem qualquer explicação) e que teve o claro intuito de pressionar a INFRAERO para privatizar os aeroportos, esse pleito vem ganhando força desde essa época e isso não é mera coincidência.

Bem, é isso. Ontem fiquei indignada com tudo que ouvi no Programa do Jô e suas "debaterdoras" e além de ter perdido uma hora de sono assistindo o programa, perdi mais uma rolando na cama sem conseguir dormir de tão irritada que fiquei. E isso é apenas um desabafo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Lençóis

Vez por outra, forro a cama com um lençol azul, cubro meu travesseiro com uma fronha azul e pego, para me cobrir, um lençol verde-mar. Assim, me sinto como que na intersecção do céu com o mar, intersecção existente nos meus sonhos, intersecção que embala meus sonhos.


Debaixo do travesseiro
Guardo os meus segredos
Pondo em cima a cabeça
Para que não fujam

Debaixo do travesseiro
A tua lembrança oculto
E a tua voz, ela entre as espumas ficará
Ela no tempo não se dissipará

Debaixo do travesseiro
Escondo os meus desejos
Faço-os ficarem perto
Dos meus sonhos

Debaixo do travesseiro
Não há lugar
Onde esconder
As roupas mofadas

terça-feira, 5 de maio de 2009

Adão



O título deste post deve-se ao nome da pintura aí do lado. Chama-se "Adam" e é um trabalho do artista Barnett Newman.

Gosto de saber que ele usou o vermelho e o marrom como forma de remeter ao que seria a intimidade do homem com a terra.

promessa do bom tempo

"se fizer bom tempo amanhã, eu vou"

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Capitu

Sob certas condições, acho que todo mundo tem olhos de ressaca.

domingo, 3 de maio de 2009

quando não há palavras

um abraço é a única palavra que serve.
então, como a gente faz se está longe?

Bom tempo

Para Luaní. E para todos nós.
Uma música que, às vezes, serve como mantra. :)


"Bom Tempo
Composição: Chico Buarque

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo

Do duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas, finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí

No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou
Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou
Satisfeito, a alegria batendo no peito
O radinho contando direito
A vitória do meu tricolor
Vou que vou
Lá no alto
O sol quente me leva num salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
Um pescador me confirmou
Que um passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus"

à deriva

à espera dos bons ventos

sábado, 2 de maio de 2009

Uma canção

É comum eu ouvir músicas e não gostar delas e, um belo dia, ouvir e passar a gostar. Isso aconteceu ontem, com essa aqui:


"Seu Nome
Composição: Vander Lee

Quando essa boca disser o seu nome, venha voando
Mesmo que a boca só diga seu nome de vez em quando
(repete)

Posso enxergar no seu rosto um dia tão claro e luminoso
Quero provar desse gosto ainda tão raro e misterioso do amor...

Refrão:
Quero que você me dê o que tiver de bom pra dar
Ficar junto de você é como ouvir o som do mar
Se você não vem me amar é maré cheia, amor
Ter você é ver o sol deitado na areia
(repete)

Quando quiser entrar e encontrar o trinco trancado
Saiba que meu coração é um barraco de zinco todo cuidado
(repete)

Não traga a tempestade depois que o sol se pôr
Nem venha com piedade porque piedade não é amor
(repete)

Refrão 2x"

sexta-feira, 1 de maio de 2009

para lembrar o primeiro de maio

uma música bonita.


"Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali
E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si
Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas

Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
E é bendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar
O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão
Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhar do seu ventre
O homem de amanhã"

ainda mais quando cantada por Milton.

À flor da pele

Um passarinho me disse que à flor da pele pode ser quando a gente chora com beijo de novela, mas que é mesmo quando a gente, mal acorda, começa a chorar.