domingo, 24 de maio de 2009

O pai, o filho, o forno

"Nacinho era filho de padeiro. Mestre padeiro, como gostava de dizer seu pai. Cedo na vida, foi ajudá-lo na padaria, primeiro carregando farinha, melando-se de branco, o fino pó mesclado ao suor do corpo pequeno. Gostava de ver o pai batendo na massa, sabendo o ponto em que a pasta estava pronta para ser moldada, os pequenos pedaços enfileirados na tábua cumprida, enfiados no forno em que o fogo esperava, quieto, sem pressa para transformá-los em pão. Aprendia pelos olhos o movimento preciso das duas mãos sacudindo a longa pá, os pedaços de massa obedecendo à ordem das mãos paternas, caindo uniformes no chão do forno. Algum dia queria ele mesmo ser o dono daquele movimento. Compor a mistura, bater a massa, dar forma aos pães, nada parecia mais bonito do que o momento de introduzir a pá no forno e o gesto vigoroso e preciso de entregar o pão ao trabalho do fogo.

Um dia, seu pai morreu, como morrem os pais. Mas se os pais podem morrer, morrer não pode o que fazem os pais. E vai Nacinho, nascido Inácio, escrito Ignácio, fazer o que seu pai não mais podia. Num gesto automático, botou no bolso as chaves que estavam em cima da penteadeira. Deixou o corpo do pai ao pranto das mulheres, deixou a casa ao cheiro lúgubre das velas, deixou a rua à procissão das almas e foi cumprir o ofício de ser como seu pai.

A madrugada o conduzia a passos firmes entre poças de lama até a rua calçada de onde já se via, por cima dos toldos de lona, o acrílico das letras vermelhas sobre o fundo branco: Padaria Triunfo. Sentados no meio-fio, três homens esperavam. Quando ele passou, todos eles se levantaram. Sem dizer nada, apenas esperaram pelo gesto que tirou do bolso o molho de chaves. Aberta a porta, acesa a luz, estava lá o forno e sua boca a quem, agora, ele daria vida. A lenha estava lá, preparada desde a véspera. Foi fácil ensopar de querosene os gravetos embaixo dos toros grossos e jogar o fósforo aceso numa manobra rápida que não evitou, porém, um leve chamuscar dos pêlos da mão. Pronto, estava lá o fogo esquentando a chapa de ferro que logo incandesceria. E logo o trabalho dos homens fez girar a misturadora com a massa de farinha, fermento, água e sal. E logo os pedaços de massa estavam enfileirados sobre a longa pá, esperando pelo corte fino por onde se abririam depois, grávidos de calor.

Tudo pronto. Faltava agora apenas que as duas mãos de Inácio apanhassem a longa tábua e a enfiassem pela boca do forno - forno, tirando bolo - bolo, o que eu mandar - dá: seu rei mandou dizer que esta longa tábua grudasse em suas mãos Inácio, e que você agora é ela. E que a boca do forno está aberta esperando por você. Quando você enfiar a tábua com os pães, você vai entrar junto com ela. Você agora, Inácio, além de tábua, é mais um pão. Só mais um que o forno vai cozer, vai assar, vai dourar, estufar e depois mandar pra uma mesa qualquer de qualquer casa onde um homem qualquer vai partir em dois e mergulhar no copo de café e depois chupar a ponta mais molhada e enfiar todo na boca que vai mastigar você com poucos dentes. Mas antes esta outra boca, esta boca de forno, vai engolir você.

Lá vai Inácio enfiando a longa tábua com os pedaços brancos em fileira. Adeus, Inácio, que o forno vai comer, Lá vai e não vai Inácio que o forno já lambe a cara, que dentro do forno em brasa vê a cara de seu pai. As mãos largam a tábua. As mãos desesperam e agarram a borda do forno. Chiam, ardem as mãos. Entre dor e susto, Inácio vê pela última vez a boca do forno pai."
(Ronaldo Monte, em Memória do Fogo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário