domingo, 10 de maio de 2009

Mãe

"Fomos para Água Branca e hospedamo-nos na casa de um amigo. Mané Taratá foi avisado de nosso paradeiro e logo Lampião nos alcançaria. Dois dias depois do seu nascimento, o menino recebia o nome de João do Mato. Algumas pessoas assistiram ao batizado. Maria Bonita e Lampião, seus padrinhos, jogavam-lhe água na cabeça e diziam a um só tempo:

- Te batizo em nome do Padre, do Fio e do Esprito Santo. Amém. Que Deus te dê sorte, João do Mato.

João do Mato nascera em uma gruta, numa tardezinha de meio de ano de mil novecentos e trinta e sete. Ele era o filho de minha meninice... o filho de minhas tropelias pela caatinga.

O destino, porém, preparava a hora de separar-me de meu filho - era a situação, em verdade, que nos impunha este procedimento. Quem, levando uma vida perigosa e incerta como aquela, poderia ter filhos em sua companhia? Como cuidar de bebês se, muitas vezes, não tínhamos água, comida, roupa, nem descanso? Impossível. Não existia outra solução. A criança poderia ficar doente, exigir cuidados e, quando uma volante estava no rastro do grupo, as paradas eram impossíveis. Mané Taratá e sua mulher foram encarregados de levar João do Mato até a casa de Galdino Leite, um amigo. A grande alegria por ter dado à luz um filho me foi imediatamente substituída pela imensa tristeza por ter de separar-me da criança. Depois de tanto sacrifício, eu não teria o direito de criar meu próprio filho. Era triste ter de entregar a alguém aquele ser indefeso, inocente, sem saber o que se passava ao seu redor.

Fiquei só, profundamente só a partir daquele dia. Nada preenchia o vazio que ocupou meu coração. Era como se tivessem levado um pedaço de mim.

Estava incompleta. Faltava meu João do Mato, com quem eu tanto sonhara e agora não podia sequer segurá-lo em meus braços de mãe; a vida não me dava o direito de ver meu filho crescer alimentado por mim e receber a ternura do meu sorriso, mesmo dentro das caatingas, na rudeza da vida do cangaço. Mesmo assim quisera eu ter o direito de criá-lo, de vê-lo chamar-me de mãe pela primeira vez, como faziam as outras crianças.

O tempo, porém, cura tudo, mesmo as feridas que mais doem. Aos poucos, fui encontrando maneiras de suportar aquela saudade, tiradas do meu interior. Afinal, meu filho estava bem guardado.

No dia seguinte, já estava novamente em outra andança pelo mato.

Nos coitos, ocorriam ocasiões, poucas é verdade, de os casais dialogarem entre si - marido e mulher - sobre o destino a seguir, coisas a fazer, decisões a tomar e planos para o futuro (mesmo que o futuro fosse um paradoxo, algo incompreensível, mas real, numa existência essencialmente marcada pela luta pela sobrevivência e pelo presente, pelo agora, na qual o passado era folha caída e transformada rapidamente em húmus pela terra da memória).

A maior tristeza para uma mulher cangaceira era dar à luz um filho e ser obrigada a dá-lo a gente estranha para criá-lo, com pouca ou nenhuma possibilidade de revê-lo algum dia. O agravante era não poder dar o filho para alguma família conhecida, por causa das perseguições que sofriam por parte das volantes.

Os filhos eram dados às escondidas, para que ninguém soubesse serem filhos de cangaceiros."

(Ilda Ribeiro de Souza (Sila), Angicos, eu sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço)

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