domingo, 24 de maio de 2009

O outro

"(...) A figurar Matilde trancada num sanatório, era mil vezes preferível perambular pela cidade, adivinhando a silhueta dela em cada janela de arranha-céu. Algum dia eu haveria de topar com ela, mesmo que se passassem anos, mesmo aos beijos com outro. E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. A calçada onde em tempos ela saltitava como se jogasse amarelinha, porque não podia pisar senão nas pedras brancas. (...)"
(Chico (Buarque), Leite Derramado)



A outra

A outra.
Assim ela se observa,
Quando contigo.
A outra muito quer
Querendo outra ser.
A outra é para ti
Imperceptível.
Pena.
Procurava ela tão só um abrigo
Onde adormecer.

A outra.
Para ela só indiferença.
Tamanha.
E sequer percebes
Tanto machuca.

A outra pensou em uma árvore
Onde se enforcar.
Desistiu.
Nem assim te lembrarias
Ela a te mirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário