terça-feira, 30 de junho de 2009

A palo seco

"A PALO SECO

1.1. Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

1.2. O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

1.3. O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;

que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.

1.4. O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;

é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.

2.1. O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;

a pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.

2.2. Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;

mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.

2.3. Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido sutil
que se coa nas frestas
que no cante sentiu;

o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.

2.4. Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;

quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.

3.1. A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:

enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.

3.2. A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;

é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.

3.3. A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo,
por ser a contravento;

é cante que caminha
com passo paciente:
tem a fibra de dente.

3.4. A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;

cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.

4.1. A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

4.2. A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra,
o ferro contra o ferro;

a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.

4.3. A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

4.4. Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente."
(João Cabral de Melo Neto)



"A Palo Seco
Composição: Belchior

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português

Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força desse destino
O tango argentino me vai bem melhor que o blues

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Eu quero que esse canto torto
Feito faca corte a carne de vocês"

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